Arquitetos e o mercado imobiliário

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AU – O mercado imobiliário brasileiro, desde meados dos anos 2.000, está em boa fase. Foram lançadas no município de São Paulo, segundo a Embraesp, em estudo apresentado pelo Secovi-SP,24,2 mil unidades residenciais por ano, em média, na primeira metade da década; de 2006 a 2010, essa mesma média subiu para 33,6 mil unidades. Ou seja: foram lançadas aproximadamente 40% mais unidades residenciais por ano em São Paulo na segunda metade dos anos 2000, em comparação com a primeira. Com maior ou menor intensidade, o fenômeno se repetiu pelo país.

O mercado imobiliário costuma ser conservador e em geral é muito prático com relação à arquitetura. Não foi – ou não está sendo – diferente nesse período de expansão. Existem alguns motivos para isso. Um empreendimento imobiliário é um negócio de capital intensivo, submetido a uma regulamentação complexa e que corre contra o tempo. Um pequeno erro no projeto pode inviabilizar uma obra; a interpretação distorcida da legislação pode atrasá-la indefinidamente. O incorporador precisa controlar todos os riscos do projeto que desenvolve: e uma forma de controlar riscos é centralizar trabalhos terceirizados em fornecedores com experiência no ramo e em que confia.

Isso foi o que aconteceu, de certa forma, com os projetos arquitetônicos contratados pelas incorporadoras nesse período. Antes de 2006, quando essa retomada começou, alguns arquitetos, por um ou outro motivo, já estavam acostumados a atender o mercado imobiliário: entendiam a legislação, tinham uma equipe organizada e relativamente grande, conheciam pessoalmente os donos das construtoras. Ou seja: supostamente estavam mais bem preparados para atender as incorporadoras, que não paravam de crescer. Em alguns escritórios, foram montadas praticamente linhas de produção de projetos, que se repetiam e se espalharam por cidades como São Paulo.

O problema não é o fato do mesmo projeto – ou de um projeto parecido – ser executado mais de uma vez, considerando que seja eficiente, inteligente, bonito. O problema é que – como disse – os escritórios que os projetaram não foram necessariamente selecionados por esses motivos. O volume do que o mercado imobiliário produziu nos últimos cinco anos foi alto; qualitativamente, porém, pouca coisa interessante apareceu. Viu-se muita fachada neoclássica nitidamente fora de escala, inclusive em empreendimentos de alto padrão; acabamentos se esforçando para parecer ser o que não são; muros enormes fechando ruas, que dessa forma tendem a ter problemas de segurança; para não falar em guaritas fora do lugar, vagas mal distribuídas, detalhes mal encaixados, etc. O incorporador evitou alguns riscos; e outros problemas – e não só estéticos – apareceram.

Estamos passando por um momento – acredito – de transição. Com empreendimentos prontos, está mais fácil separar a boa arquitetura do que foi feito sem cuidado, simplesmente para fazer volume, nesse período. Porque há exceções. Num mercado dominado por produtos parecidos, com nomes parecidos, alguns incorporadores e arquitetos trabalharam para desenvolver projetos inteligentes, com senso estético e preocupação com o entorno. São empreendimentos que agora, prontos, são inclusive alugados ou vendidos por preços consideravelmente mais altos do que concorrentes.

Um bom exemplo é o Brascan Century Plaza, no Itaim, projetado pelo Königsberger Vannucchi, que abriu uma parte do terreno para a cidade, criou uma praça na região e é um sucesso comercialmente. Os dois empreendimentos Arte Arquitetura, do Rocco & Associdados, um no Itaim e outro nos Jardins, que abrigam, respectivamente, uma escultura dos Irmãos Campana e um painel do Antônio Peticov, são extremamente bem vendidos ou alugados hoje. E os edifícios incorporados pela Idea Zarvos e pela Movimento Um – que desenvolvem projetos com escritórios como Nitsche, Isay Weinfeld, FGMF – são muito concorridos nos lançamentos.

De um lado, portanto, parece que os clientes mais educados estão cansados de projetos fracos e repetidos – e estão reconhecendo um projeto mais bem pensado, melhor mesmo. De outro, uma nova geração de arquitetos brasileiros – muitos com passagens pelas melhores universidades e escritórios do mundo – está perdendo o preconceito com relação ao mercado imobiliário (que não é sinônimo de “especulação imobiliária”) e se dedicando mais a entender como ele funciona. Um empreendimento economicamente rentável não precisa de um projeto fraco nem agressivo urbanisticamente. Aliás, é a cada dia mais inimigo deles.

Essa busca por melhores projetos arquitetônicos – tanto dos clientes quanto dos incorporadores – abre espaço para novos arquitetos atuarem no mercado imobiliário. Grandes arquitetos brasileiros se dedicaram por muito tempo a casas particulares, escolas, bibliotecas, museus, concursos, etc. – e, porque o mercado parou nos anos 80 e 90, fizeram poucos edifícios residenciais ou comerciais. E arquitetos que estão se formando recentemente às vezes não tem experiência suficiente para entender a dinâmica do trabalho para uma incorporadora, que, sem ser melhor ou pior, é diferente do trabalho para um cliente particular ou para uma instituição pública.

É preciso que o arquiteto entenda, em primeiro lugar, que um empreendimento imobiliário não é exclusivamente um prédio: ele é – até juridicamente – uma empresa, e as suas unidades são produtos que serão vendidos. Um edifício desenvolvido por uma incorporadora precisa ser economicamente viável, se é possível dizer assim, em si mesmo. Uma escola, um museu ou um prédio público devem ser construídos dentro de um orçamento, mas não serão vendidos depois, por um preço que você ainda não sabe exatamente qual será para dezenas ou centenas de clientes ainda indefinidos. Mesmo uma sede de um banco ou de uma indústria não segue uma equação financeira tão delicada – porque geralmente têm uma finalidade institucional, e não econômica.

Entender que um edifício desenvolvido por uma incorporadora precisa ser necessariamente viável do ponto de vista financeiro é, portanto, o primeiro passo para que o bom arquiteto estreite a conversa com o incorporador. A verdade, que às vezes dói, é que – como o skyline das maiores cidades brasileiras atesta – um edifício com excelente arquitetura pode deixar de ser construído por ser inviável financeiramente, mas certas aberrações arquitetônicas não deixarão de ser construídas se financeiramente fecharem a conta. O arquiteto que trabalha ou pretende trabalhar com uma incorporadora precisa conhecer bem os preços dos materiais que recomenda e as suas opções; precisa se preocupar com a eficiência de todos os espaços do edifício, como térreo, das plantas e da garagem, considerando as possibilidades e as restrições da legislação; precisa compreender, enfim, que para cada decisão que toma existe – à parte uma conseqüência, digamos, estética – uma conseqüência na estrutura de custos do projeto.

E, além do impacto das suas decisões na estrutura de custos do empreendimento, também é importante que o arquiteto entenda que as unidades derivadas do edifício projetado serão vendidas. Quer dizer: existe, do lado do incorporador – assim como acontece em qualquer outro mercado –, também uma preocupação comercial. Se, no local onde o edifício será construído, é improvável que exista demanda para um apartamento de, digamos, R$1 milhão, o espaço do apartamento – ou seja, o tamanho da sua planta mesmo – precisará ser adaptado a essa circunstância. Normalmente o bom incorporador conhece o mercado em que atua suficientemente para brifar o arquiteto com certa precisão com relação ao produto – e, quando digo produto, me refiro à metragem do apartamento – mais vendável no terreno que está estudando. Uma torre de apartamentos de 100m² pode ser desenhada de várias formas diferentes; mas, se o apartamento passar para 180m², custará, para o cliente final, praticamente o dobro do que o de 100m², e corre-se o risco de inviabilizar comercialmente o empreendimento.

É muito comum que arquitetos e incorporadores trabalhem lado a lado no estudo de viabilidade de terrenos para incorporação. Um incorporador compra mais ou menos 1% dos terrenos que analisa. Essa análise passa por várias etapas: comercial, técnica, jurídica, financeira, etc. Em determinado momento da negociação com o proprietário do terreno, o incorporador precisa de uma idéia mais detalhada do que – considerando a configuração do terreno, seu relevo, o zoneamento, etc. –, ele consegue edificar no local. O resultado desse estudo de viabilidade arquitetônico vai ser subsídio para um estudo de viabilidade econômico-financeiro detalhado do empreendimento. Com a viabilidade econômico-financeira amparada, agora, por uma viabilidade arquitetônica mais profunda, o incorporador fica seguro em fazer uma proposta final ao proprietário do terreno.

Este trabalho de viabilidade arquitetônica do empreendimento é fundamental no relacionamento do incorporador com o arquiteto. Os escritórios de arquitetura acostumados a atender o mercado imobiliário têm equipes dedicadas a atender incorporadores neste momento. Esse estudo do arquiteto é feito no risco, com o compromisso informal de que, caso o empreendimento evolua, o arquiteto que fez o estudo preliminar desenvolva o projeto. É raro o incorporador já ter comprado o terreno e, do zero, encomendar o projeto a um arquiteto específico; assim como é raro, apesar de acontecer eventualmente, processos de concorrência para empreendimentos que serão incorporados. Essa forma de trabalho em parceria no momento preliminar do empreendimento é a forma como a relação entre arquitetos e incorporadores se organizou, e é importante que arquitetos que pretendam entrar nesse mercado entendam como ela funciona.

O mercado imobiliário brasileiro está em plena expansão, e tende a continuar crescendo na próxima década. De 2005 para cá, com algumas exceções, ele não se destacou por ter trabalhado ao lado dos melhores arquitetos brasileiros. Mas cada vez mais os clientes viajam, estudam e reconhecem o valor da boa arquitetura contemporânea – que tem novos e bons representantes no Brasil. Alguns incorporadores perceberam isso e estão desenvolvendo projetos mais interessantes arquitetonicamente – e escritórios que se dedicam à arquitetura brasileira de qualidade estão buscando entender a dinâmica e do mercado imobiliário, para trabalhar ao lado dele. Com o mercado em expansão, edifícios serão exigidos e construídos de qualquer forma. Que seja então da melhor forma.

Texto publicado na revista AU – Arquitetura e Urbanismo, em 15/04/2011.

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